quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Gedichte von der Niemandsrose | Poemas de “Rosa-ninguém”

Paul Celan | Robert de Brose

1 ES WAR ERDE IN IHNEN, und
sie gruben.
Sie gruben und gruben, so ging
ihr Tag dahin, ihre Nacht. Und sie lobten nicht Gott,
5
der, so hörten sie, alles dies wollte,
der, so hörten sie, alles dies wusste.
Sie gruben und hörten nichts mehr;
sie wurden nicht weise, erfanden kein Lied,
erdachten sich keinerlei Sprache.
10
Sie gruben.
Es kam eine Stille, es kam auch ein Sturm,
es kamen die Meere alle.
Ich grabe, du gräbst, und es gräbt auch der Wurm,
und das Singende dort sagt: Sie graben.
15
O einer, o keiner, o niemand, o du:
Wohin gings, da's nirgendhin ging?
O du gräbst und ich grab, und ich grab mich dir zu,
und am Finger erwacht uns der Ring.

1 WAS GESCHAH? Der Stein trat aus dem Berge.
Wer erwachte? Du und ich.
Sprache, Sprache. Mit-Stern. Neben-Erde.
Ärmer. Offen. Heimatlich.
5
Wohin gings? Gen Unverklungen.
Mit dem Stein gings, mit uns zwein.
Herz und Herz. Zu schwer befunden.
Schwerer werden. Leichter sein.

SALM

1 Niemand knetet uns wieder aus Erde und Lehm,
niemand bespricht unseren Staub.
Niemand.

Gelobt seist du, Niemand.
5
Dir zulieb wollen
wir blühn.
Dir
entgegen.

Ein Nichts
10
waren wir, sind wir, werden
wir bleiben, blühend:
die Nichts-, die
Niemandsrose.

Mit
15
dem Griffel seelenhell,
dem Staubfaden himmelswüst,
der Krone rot
vom Purpurwort, das wir sangen
über, o über

20 dem Dorn.

HAWDALAH

1 An dem einen, dem
einzigen
Faden, an ihm
spinnest du – von ihm

5
Umsponnener, ins
Freie, dahin,
ins Gebundne.

Groß
stehen die Spindeln

10
ins Unland, die Bäumer:es ist,
von unten her, ein
Licht geknüpft in die Luft-
matte, auf der du den Tisch deckst, den leeren
Stühlen und ihrem

15 Sabbatglanz zu --

zu Ehren.

HAVIA TERRA NELES, e eles
cavavam.
Cavavam e cavavam, seus dias
passavam assim, suas noites. E não louvavam Deus,
que, assim se ouvia, tudo isso queria,
que, assim se ouvia, tudo isso sabia.
Cavavam e já não mais ouviam;
Não se tornaram sábios, canção nenhuma encontraram,
nenhum tipo de língua inventaram.
Eles cavavam.
Veio um calmaria, e veio também a borrasca,
os mares todos vieram.
Eu cavo, tu cavas, e cava o verme também,
e o que acima cantava dizia: Eles cavam.
Ó algum, ó nenhum, ó ninguém, ó tu:
Ao que isto leva, se a nenhures leva?
Ó tu cavaste e eu cavei e eu me cavei pra junto a ti,
e no dedo despertou-nos o anel.

QUE SE PASSOU? A pedra emergiu da montanha.
Quem despertou? Tu e eu.
Língua, língua. Íntima estrela. Terra-fantasma.
Mais pobre. Exposta. Domesticada.
Aonde foi? Pro desamortecimento.
Foi-se com a pedra, com nós dois.
Coração e coração. Julgado assaz pesado.
Pesado tornando-se. Mais leve sendo.

SALMO

Ninguém nos molda de novo da terra e o barro,
ninguém evoca nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas tu, Ninguém.
Graças a ti queremos
florescer
Em tua
direção.

Um nada
éramos, somos, continuaremos
sendo, florescendo:
A rosa-nada, a
rosa-ninguém.

Com
o pistilo almibrilhante,
e o estame agriceleste,
a corona carmim
da púrpura palavra, que cantamos
sobre, ó sobre
o espinho

HAVDALAH

Junto do um, do
único
fio, junto dele
teces – por ele
entrelaçado, rumo a
liberdade, para longe,
rumo ao encadeado.

Imponentes
erguem-se os Fusos
na Desterra, as árvores: há,
de baixo acima, uma
luz entretecida à brisa
da pradaria, sobre a qual tu pões a mesa, a vazia
cadeira e seu
brilho do Sabbath em --

em sua honra.

Vädersoltavlan_cropped

Jacob Heinrich Elbfas (c.1600–1664), Vädersolstavlan. (Nebensonne ou Paraélio) em Stockholm em 1535.

FONTE: Paul Celan, Die Gedichte: Kommentierte Ausgabe. Berlin: Suhrkamp, 2005, p. 125;153.

NOTAS DO TRADUTOR:

II, v. 3: Mit-Stern. Neben-Erde | Íntima-estrela. Terra-fantasma: O prefixo “mit-“ aqui indica uma associação íntima, como em “Mitbruder” (“camarada”) e não, como se sói ver na maioria das traduções, a simples composição com a preposição "mit”/”com”. Da mesma forma com o advérbio “neben” (“póximo”, “vizinho”) que tem seu valor semântico deduzido construído, a meu ver, sobre a expressão “Nebenson”, quando, em virtude da difração da luz do sol na atmosfera, há a formação de duas imagens fantasmas do sol diametralmente opostas. Para Celan, a luz da poesia brilha, mas ela é difratada e deformada pela linguagem humana, que a torna mais distendida, pobre e particularizada.

II, v. 5: Gen Unverklungen | Pro desamortecimento: Unverklungen trata-se de um neologismo criado por Celan a partir do particípio passado do verbo verklingen, “amortecer”, quando se fala de um som (klingen sendo “soar”), e em conjunção com a partícula negativa un-, “des-”.

IV Havdalah (“Divisão”): cerimônia judaica de encerramento do Sabbath. Um dos principais símbolos do Havdála é o círio tríplice aceso durante a cerimônia e de onde, a meu ver, toda a imagética do poema deriva. É notória, também, a semelhança com o “Fuso da Necessidade”, como descrito no mito de Er na República de Platão (616b-e), algo já notado por Barbara Wiedemann, editora da obra utilizada nesta tradução.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Au Lecteur | Ao Leitor

Charles Baudelaire | Robert de Brose

Au Lecteur

1 La sottise, l'erreur, le péché, la lésine,
Occupent nos esprits et travaillent nos corps,
Et nous alimentons nos aimables remords,
Comme les mendiants nourrissent leur vermine.

5 Nos péchés sont têtus, nos repentirs sont lâches;
Nous nous faisons payer grassement nos aveux,
Et nous rentrons gaiement dans le chemin bourbeux,
Croyant par de vils pleurs laver toutes nos taches.

Sur l'oreiller du mal c'est Satan Trismégiste
10 Qui berce longuement notre esprit enchanté,
Et le riche métal de notre volonté
Est tout vaporisé par ce savant chimiste.

C'est le Diable qui tient les fils qui nous remuent!
Aux objets répugnants nous trouvons des appas;
15 Chaque jour vers l'Enfer nous descendons d'un pas,
Sans horreur, à travers des ténèbres qui puent.

Ainsi qu'un débauché pauvre qui baise et mange
Le sein martyrisé d'une antique catin,
Nous volons au passage un plaisir clandestin
20 Que nous pressons bien fort comme une vieille orange.

Serré, fourmillant, comme un million d'helminthes,
Dans nos cerveaux ribote un peuple de Démons,
Et, quand nous respirons, la Mort dans nos poumons
Descend, fleuve invisible, avec de sourdes plaintes.

25 Si le viol, le poison, le poignard, l'incendie,
N'ont pas encor brodé de leurs plaisants dessins
Le canevas banal de nos piteux destins,
C'est que notre âme, hélas! n'est pas assez hardie.

Mais parmi les chacals, les panthères, les lices,
30 Les singes, les scorpions, les vautours, les serpents,
Les monstres glapissants, hurlants, grognants, rampants,
Dans la ménagerie infâme de nos vices,

II en est un plus laid, plus méchant, plus immonde!
Quoiqu'il ne pousse ni grands gestes ni grands cris,
35 Il ferait volontiers de la terre un débris
Et dans un bâillement avalerait le monde;

C'est l'Ennui! L'oeil chargé d'un pleur involontaire,
II rêve d'échafauds en fumant son houka.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
40 — Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!

Ao Leitor

A avareza, o erro, o pecado, a leseira
infestam noss’alma e castigam os corpos,
e alimentamos nossos diletos remorsos,
como os mendigos nutrem suas bicheiras.

Tenazes, os pecados; o arrependimento, infirme,
gorda recompensa nos damos por contrição,
e felizes adentramos o enlameado chão,
crendo um vil pranto lavar nossos crimes.

No recosto do mal, eis Satã Trismesgisto
Que embala longamente noss’ alma encantada
E o rico metal de nossa vontade a um nada
reduz o sábio alquimista com seu flogisto.

É o Diabo que puxa os cordões que nos regem!
Nas coisas repugnantes encontramos repastos
E assim cada dia ao Inferno descemos um passo,
Sem horror, e através das trevas que fedem.

Como um pobre canalha que beija e morde
O seio martirizado de uma anciã vagabunda,
Furtamos de quebra uma satisfação imunda
que, como seca laranja, esprememos tão forte.

Denso, fervilhante, como um milhão de helmintos
nossa cabeça revolve num enxame de Demônios
e, ao respirarmos, a Morte, como um mecônio,
rio invisível, inunda o peito dum choro indistinto.

Se o estupro, o veneno, o punhal, e as chamas,
não bordaram ainda com desenhos tão finos
toda a tela medíocre de nossos destinos,
é porque, oh!, nossa alma não é tão sacana.

Mas dentre os chacais, as hienas e as panteras,
Os macacos, escorpiões, abutres, serpentes,
e os monstros ululantes, rastejantes, frementes,
na mistura infame de nossos vícios e mazelas,

Há um que é o mais feio, enganoso, mais imundo!
Mesmo não fazendo grandes gestos ou gritos,
De bom grado, deixará a terra toda em detritos
E num grande bocejo engolirá o mundo;

É o Enfado! O olho inchado de pura lassidão
Ele sonha com patíbulos fumando seu baseado
Tu o conheces, leitor, esse monstro delicado,
— Leitor fingidor, — meu igual, — meu irmão!

Félicien Rops, Le Songe  (1878-80)


Fonte: Les Fleurs du Mal. Classiques Français. Bookking Internacional: Paris, 1993.


Notas:

1. Primeira versão da tradução: 21 de novembro de 2018.

2. v. 2: influem nos nossos [e castigam os] |  nossa alma [noss’alma]

3. C'est l'Ennui! | É o Enfado!: “Enfado”, além de manter o mesmo padrão acentual do francês, reproduz mimeticamente o suspiro de uma pessoa enfadada com o contorno rítmico f:Ff (cf. “Que saco!” – também f:Ff, ou seja,  inspira/pausa/expira com força); os dois pontos em f:Ff representam um breve alongamento da sílaba terminada em líquida-nasal. A tradução por “Tédio” destruiria, nesse caso, a figura sonora.

4. L'oeil chargé d'un pleur involontaire | O olho inchado de pura lassidão: claramente o olho lacrimeja em virtude da fumaça do houka, que devemos imaginar envolvendo o Enfado. Não consegui chegar (ainda) a uma solução que preserve a imagem, mas fiquei satisfeito com a imagem de que o Enfado, fumando ópio, deve ter os olhos lassos e distantes.

5. son houka | seu baseado: O houka é o que chamaríamos de “narguile”/ “arguile” ou “narguilé”. Desnecessário dizer da dificuldade da rima. Ela não é importante, no entanto, e, além disso, a modernização e o aculturamento dado por “baseado” me pareceu atrativa.

6. Hypocrite lecteur | Leitor fingidor: Um aceno a Fernando Pessoa: não apenas o poeta é um fingidor; o leitor, também por viver vicariamente a real fantasia do poeta, é tão fingidor quanto aquele.

domingo, 28 de outubro de 2018

Tecendo a Manhã | Weaving the Dawn

João Cabral de Melo Neto | Robert de Brose

1

1 Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
5 que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
10 se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretencendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
15 A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.



1

1 A rooster alone does not weave the dawn:
he will be forever in need of other roosters.
Of another that will catch the crow that he
and fling it to another; of another rooster
5 that catches the crow of a rooster before him
and flings it to another; and of other roosters
that amidst many other roosters criscross
the threads of the sun made of rooster crows,
so that the dawn, from a gauzy gossamer
10 begins to weave itself through all the roosters.

2

Taking shape into a canvass, amidst all,
rising as a tent, which admits of all,
interlacing itself for all, in the shawl
(the dawn) that floats like an empty cocoon.
15 The dawn, a dossel of a fabric so sheer,
that, woven, rises by itself: light balloon.



rooster2 
FONTE: A Educação pela Pedra e depois. Nova Fronteira: São Paulo, 1997.