segunda-feira, 30 de março de 2015

El Desdichado

Gérard de Nerval | Robert de Brose

Je suis le Ténébreux, - le Veuf, - l'Inconsolé,
Le Prince d'Aquitaine à la Tour abolie :
Ma seule Etoile est morte, - et mon luth constellé
Porte le Soleil noir de la Mélancolie.

5 Dans la nuit du Tombeau, Toi qui m'as consolé,
Rends-moi le Pausilippe et la mer d'Italie,
La fleur qui plaisait tant à mon coeur désolé,
Et la treille où le Pampre à la Rose s'allie.

Suis-je Amour ou Phébus ?... Lusignan ou Biron ?
10 Mon front est rouge encor du baiser de la Reine;
J'ai rêvé dans la Grotte où nage la sirène...

Et j'ai deux fois vainqueur traversé l'Achéron :
Modulant tour à tour sur la lyre d'Orphée
Les soupirs de la Sainte et les cris de la Fée.
Eu sou o Tenebroso, - o Viúvo, - o Inconsolado
O Príncipe da Aquitânia na Torre vazia:
Minha estrela está morta, - e meu lude quebrado
Carrega o Sol negro da Melancolia.

5 Na Noite da Tumba, tu que me hás consolado,
Dá-me o monte Posílipo e o mar da Itália,
A flor que agradou meu coração desolado,
E a treliça onde a rama à rosa se amalha.

Sou o Amor ou Febo?... Lusinã ou Birão?
10 A fronte ainda rutila do beijo da rainha;
Eu da sereia sonhei na grota marinha...

E duas vezes vencedor cruzei o Aquerão:
Modulando a lira de Orfeu de forma alternada
Entre os suspiros da santa e os gritos da fada.


 

Mandorla

Paul Celan | Robert de Brose


In der Mandel – was steht in der Mandel?
Das Nichts.
Es steht das Nichts in der Mandel.
Da steht es und steht.

5 Im Nichts – wer steht da? Der Koenig.
Da steht der Koenig, der Koenig.
Da steht er und steht.

    Judenlocke, wirst nicht grau.
Und dein Aug – wohin steht dein Auge?
10 Dein Aug steht der Mandel entgegen.
Dein Aug, dem Nichts stehts entgegen.
Es steht zum Koenig.
So steht es und steht.

     Menschenlocke, wirst nicht grau.
15 Leere Mandel, koenigsblau.
Na amêndoa – o que fica na amêndoa?
O Nada.
Na amêndoa fica o Nada.
La ele fica, ele fica.

5 No nada – quem fica lá? O Rei.
Lá fica o Rei, o Rei.
Lá ele fica, ele fica.

    Cacho judeu, gris não te verei.
E teu olho – onde fica teu olho?
10 Teu olho fica à amêndoa oposto.
Teu olho fica ao Nada contraposto.
Ele fica face ao Rei.
Lá ele fica, ele fica.

     Cacho humano, gris não te verei.
15 Oca amêndoa, azul-do-rei.

Notas:

1. Mandorla: Palavra italiana que significa "amêndoa", mas também, e sobretudo, a auréola (vesica piscis) que circunda o ícone de Cristo. A mandorla separa o mundo sublunar do divino como se fosse um parêntese aberto na realidade.
2. Das Nichts: Em algumas representações apofáticas de Cristo e do divino, sobretudo ortodoxas, a mandorla apresenta-se ou completamente negra, ou com um núcleo negro circundado por anéis cada vez mais escuros de fora para dentro. O que jaz no centro é um mistério indescritível, visto pelos olhos mortais como um Nada, de forma análoga ao horizonte de eventos de um buraco negro.
3. Da steht es und steht: Há um jogo, em todo o poema, sobre os diversos matizes de signigicado do verbo stehen. Por exemplo, o primeiro verso poderia ser lido como: "Na amêndoa – o que está inscrito na amêndoa?". No entanto, no v. 4, usado intransitivamente, stehen denota a permanência das coisas que existem fora do tempo, i.e., que são transcendentes, que "estão" e "ficam" no mesmo estado, imutáveis ad aeternum. Já nos vv. 9-12, stehen serve para indicar (o)posição (wohin/ entgegenstehen) ou (com)posição (stehen zu).
4. koenigsblau: azul-real, um tom escuro de azul, associado com o centro negro da mandorla, o Ayn-Sof, ou o inefável. Foi preciso adaptar os vv. 8 e 14 para manter a rima final. Cf. uma passagem semelhante em T. S. Eliot, Ash Wednesday, "In blue of larkspur, blue of Mary's colour,| Sovegna vos".

Edições:

4 Outubro 2018: vv. 1, 9, 10 "está" [fica] | v. 3 "Na amêndoa fica o Nada" [O Nada está na amêndoa] | vv. 4, 7, 13 "lá ele fica, ele fica"  [lá ele está, e está] | v. 5 "quem fica lá" [quem lá está] | v. 6 "Lá fica o Rei, o Rei" [Lá está o Rei, o Rei] | v. 9 "onde" [aonde] | v. 11 "Teu olho fica ao Nada contraposto" [Teu olho ao Nada está contraposto] | v. 12 "Ele fica face ao Rei" [ele está para o Rei]

sábado, 28 de março de 2015

Allerseelen | Dia de Finados

Paul Celan | Robert de Brose


Was hab ich getan?
Die Nacht besamt, als könnt es
noch andere geben, nächtiger als
diese.

5 Vogelflug, Steinflug, tausend
beschriebene Bahnen. Blicke,
geraubt und gepflückt. Das Meer,
gekostet, vertrunken, verträumt. Eine Stunde,
seelenverfinstert. Die nächste, ein Herbstlicht,
10 dargebracht einem blinden
Gefühl, das des Wegs kam. Andere, viele,
ortlos und schwer aus sich selbst: erblickt und umgangen.
Findlinge, Sterne, schwarz und voll Sprache: benannt
nach zerschwiegenem Schwur.

15 Und einmal (wann? auch dies ist vergessen);
den Widerhaken gefühlt,
wo der Puls den Gegentakt wagte.

O que foi que eu fiz?
Inseminei a noite como se pudera
outras inda haver, mais noturnas que
essa.

5 Voo de ave, voo de pedra, mil
estradas traçadas. Olhares
tolhidos e colhidos. O mar
provado, absorvido, abstraído. Uma hora,
animadumbrada. A próxima, uma luz outonal,
10 ofertada a um sentimento
cego, que do caminho veio. Outros, muitos,
ilocáveis, pesados por si mesmos: mirados e contornados.
Achados, estrelas, negros e todo linguagem: nomeados
a partir de um voto fragmentado em silêncio.

15 E uma vez (quando? também isto foi esquecido);
o gancho sentido
onde o pulso tentou o contra-ataque.

Elohim Creating Adam, William Blake, 1795
Elohim Creating Adam, William Blake, 1795

Notas

1. Die Nacht besamt: Irene Fußl (Geschenke an Aufmerksame, 2008, p. 62) vê neste poema uma alusão ao processo de criação levado a cabo por Lilith, que roubaria o sêmen dos homens para produzir a sua prole demoníaca e, de certa forma, incompleta, defeituosa, porque desprovida do divino. A indagação do v. 1, "O que foi que eu fiz?" leva a crer que o eu-lírico de certa forma arrepende-se de sua criação ou de sua ousadia como demiurgo imperfeito de um microcosmos pessoal.
2. Vogelflug (...) gepflückt: Tentei manter o andamento trocaico do original (Ff Ff Ff) e transformei, até onde pude, a aliteração em /b/ do v. 6 em /s/ e /t/. Parece-me que a clareza do /a:/ em Bahnen aponta para a extensão do céu, contemplado pelo olhar do eu-lírico, onde estão o caminho das aves e das pedras que lhes perseguem (?), o que me levou a procurar duas palavras que contivessem um /a/ em posição tônica e, portanto, mais longa, para reproduzir esse efeito. O eco de "estradas traçadas" pareceu-me, portanto, apropriado.
3. gekostet, vertrunken, verträumt: Pareceu-me importante preservar a repetição do ver- (um sufixo, em alemão que indica completude, ou a mudança de estado, da ideia expressa por um verbo ou um nome) em português. Note que "verträumen" não é apenas "passar o tempo sonhando", mas "sonhar com algo que não existe" ou que "existe apenas em sonhos", algo que é, portanto, uma "abstração". Esse mar com que sonha o eu-lírico é um mar que só existe em seus sonhos, ou seja, é a abstração de um mar.
4. seelenverfinstert: palavra inventada por Celan, que tentei reproduzir em português por "animadumbrar", i.e., "encobrir com a sombra da alma". "Seele", aqui, tem sentido ativo: "que a alma obumbrou, encobriu, obscureceu".
5. FindlingeSterne, schwarz und voll SpracheFindling é tanto um bloco de rocha que foi deslocado pela ação das geleiras (das marés, de lava etc.) quanto uma criança perdida, um órfão, encontrado a vagar, mas de quem nada se sabe. Preferi manter a tradução mais literal, "achado", porque pode se referir a ambos. Schwarz und voll Sprache pode ser tanto predicativo de Sterne quanto de Findling e "Sterne", prefeiro a última opção e, por isso, levei ao masculino plural.
6. den Widerhaken gefühlt, | wo der Puls den Gegentakt wagteDer Widerhake é um gancho, como um anzol e não, necessariamente, uma farpa (que seria Stachel, como em Stacheldraht).
É no sentido de "gancho" que Celan usa a mesma palavra em Hast du eing Aug: "Hast du ein Aug| für den Widerhaken| in meiner Herzwand". Gegentakt, por outro lado, deve-se referir a um contra-ritmo, um contra-ataque, como se o eu-lírico lutasse contra algo que tenta fazer com que ele se conforme a um determinado movimento/ destino/ direção, como se ele fora uma marionete, ou melhor, um peixe fisgado, que tenta se libertar do anzol, apenas para ser puxado de nova conta a sua vontade em direção à morte.

Outras traduções:

Dossier Paul Celan: Día de Muertos