segunda-feira, 26 de novembro de 2018

ODE XVII Galimatias Pindarique | ODE XVII Baboseiras Pindáricas

Voltaire | Robert de Brose

ODE XVII

Galimatias Pindarique

Sur un carrousel donné par L’Impératrice de Russie

(17661)

1 Sors du tombeau, divin Pindare,
Toi qui célébras autrefois
Les chevaux de quelques bourgeois
Ou de Corinthe ou de Mégare;
5 Toi qui possédas le talent
De parler beaucoup sans rien dire;
Toi qui modulas savamment
Des vers que personne n'entend,
Et qu'il faut toujours qu'on admire.

10 Mais commence par oublier
Tes petits vainqueurs de l'Élide;
Prends un sujet moins insipide;
Viens cueillir un plus beau laurier.
Cesse de vanter la mémoire
15 Des héros dont le premier soin
Fut de se battre à coups de poing
Devant les juges de la Gloire.

La Gloire habite de nos jours
Dans l'empire d'une amazone;
20 Elle la possède, et la donne:
Mars, Thémis, les Jeux, les Amours,
Sont en foule autour de son trône.
Viens chanter cette Thalestris2
Qu'irait courtiser Alexandre.
25 Sur tes pas je voudrais m'y rendre,
Si je n'étais en cheveux gris.

Sans doute, en dirigeant ta course
Vers les sept étoiles de l'Ourse,
Tu verras, dans ton vol divin.
30 Cette France si renommée
Qui brille encor dans son déclin;
Car ta muse est accoutumée
A se détourner en chemin.

Tu verras ce peuple volage.
35 De qui la mode et le langage
Régnent dans vingt climats divers;
Ainsi que ta brillante Grèce
Par ses arts, par sa politesse.
Servit d'exemple à l'univers.

40 Mais il est encor des barbares
Jusque dans le sein de Paris;
Des bourgeois pesants et bizarres,
Insensibles aux bons écrits;
Des fripons aux regards austères.
45 Persécuteurs atrabilaires
Des grands talents et des vertus;
Et, si dans ma patrie ingrate
Tu rencontres quelque Socrate,
Tu trouveras vingt Anitus3.

25 Je m'aperçois que je t'imite.
Je veux aux campagnes du Scythe
Chanter les jeux, chanter les prix
Que la nouvelle Thalestris
Accorde aux talents, au mérite;
55 Je veux célébrer la grandeur,
Les généreuses entreprises.
L'esprit, les grâces, le bonheur.
Et j'ai parlé de nos sottises.

Notes dans l’édition originale

1. Le titre que je donne à cette pièce est celui qu'elle a dans les éditions données du vivant de l'auteur, en 1770, 1771, 1775. Quant à la date, c'est celle que lui donnent les éditions de Kehl. Mais je remarquerai que dans les éditions de 1770, 1771, 1775, au lieu de 1766, on lit 1768, date qui me parait plus probable, soit pour époque du carrousel, soit pour époque de la composition de la pièce. Voltaire a fait l'éloge de la magnificence de ce carrousel de Catherine II (dans le chapitre xcix de Essai sur les mœurs). Mais le passage où il en parle n'existait pas encore dans l'édition in-4º, qui est de 1708 : nouvelle raison pour rejeter la date de 1760. (B.)

2. Thalestris, reine des Amazones, sortit de ses États pour venir voir Alexandre le Grand, auquel elle avoua de bonne foi qu'elle désirait avoir des enfants de lui, se croyant digne de donner des héritiers à son empire. Quinle-Curce, (Note de Voltaire, 1770.)

3. Anitus fut le délateur et l'accusateur calomnieux de Socrate. (Id., 1770.)

ODE XVII

Baboseiras Pindáricas

Para um carrossela dado pela Imperatriz da Rússia

(17661)

Sai da tumba Píndaro divino
tu, que outrora já cantaras
os corcéis desses grã-finos
de Corinto ou de Megáras;
Tu, que tinhas o talento
de mui falar sem dizer nada;
tu, que moldavas a contento
odes que ninguém entende
e devem ser admiradas.

Mas começa por esquecer
d’Élidab teus parvos vencedores
tema escolhe de mais sabores;
lauréis mais belos vem colher.
Cessa de louvar a memória
de heróis cujo único cuidado,
foi com socos ser golpeados
frente aos árbitros da Glória.

A Glória existe em nossos dias
no império de uma amazonac
ela a possui e a comissiona:
Marte, Têmis, os jogos, o amor
cercam seu trono de esplendor
Vem cantar essa Talestris2,
Que Alexandre cortejaria.
E em seu rastro eu seguiria
Não fora já os cabelos gris.

Decerto, dirigindo o olhar
da Ursa àquele luminard,
verás, no teu voo divino
Essa França tão renomada
qu’inda luzeia em seu declínio;
pois tua musa é acostumada
a se perder em seu caminhoe.

Verás um povo mui vaidoso
cuja língua e estilo primoroso
viçam em climas mui diversos;
Mas tua Grécia em fulgurância
Por suas artes e a elegância
Serviu de exemplo ao universo.

Ainda bárbaros de todos lados
há no seio de Paris dispersos;
Burgueses chatos e bizarros;
Insensíveis aos bons versos;
Canalhas de austero senho,
perseguidores sem engenho
de grãs virtudes e talentos;
e se da pátria por estes ares
algum Sócrates encontrares
Vais ver Ânitos aos centos3.

Já me apercebo que te imito.
Quero da Cítia no infinito
Cantar os jogos e os prêmios
Que Talestris, o novo gênio,
dá aos talentos por seu viço;
Quero celebrar a grandeza,
e as aventuras adventícias:
A alma, a graça, a beleza.
Mas falei de nossa estultícia.

Notas da edição original

1. O título que dei à este poema é aquele que ele tem nas edições dadas ainda em vida pelo autor, em 1770, 1771, 1775. Quanto à data, é aquele lhes dão as edições de Kehl. Mas eu notaria que nas edições de 1770, 1771, 1775, ao invés de 1776, lê-se 1768, data que me parece mais provável, seja por ser a época do carrossel, seja por ser a época da composição do poema. Voltaire fez um elogio da magnificiência desse carrossel de Catarina II (no capítulo XCIX do Essai sur les mœurs). Mas a passagem de que ele fala não existia mais na edição in-4º que é aquela de 1708: uma nova razão para rejeitar a data de 1760. (B).

2. Talestrís, rainha das amazonas, saiu de sua terra para ir ver Alexandre o Grande, a quem ela prometeu de boa fé que desejava ter filhos dele, crendo-se digna de dar herdeiros a seu império. Quinte-Curce, (Nota de Voltaire, 1770.)

3. Ânito foi o delator e acusador calunioso de Sócrates. (Id., 1770)

st. petersbourg square

FONTE: Œuvres complètes de Voltaire: Poésie. Nouvelle Édition conformé par le texte à l’édition de A. J. Quentin Beuchot. Garnier: Paris, 1877, pp. 486-89.

NOTAS DO TRADUTOR:

(a) Esse carrossel foi uma espécie de competição equestre (e não o brinquedo temático) organizada por Catarina II na praça do Palácio de Inverno em São Petesburgo. O carrossel Russo fora inspirado pelas competições equestres dos jogos olímpicos e deveria rivalizar com o grande carrossel montado por Luís XIV em 1662 na praça das Tuileries, em Paris, para celebrar o nascimento do Delfim, bem como com aqueloutro magnífico carrossel organizado em  Berlin em 1765 pelo Rei da Prússia, Frederico II, o Grande. O carrossel russo era disposto em três quadrilhas: de eslavos, de romanos, de indianos e de turcos. Cada uma das quadrilhas era encabeçada por um arauto e uma banda, que deveria tocar músicas representativas de suas regiões. Um anfiteatro fora construído na praça do palácio de inverno, onde deveriam se encontrar as quadrilhas. Dali os aristocratas percorreram as raias improvisadas na praça e arredores, decapitando manequins de cera. A grande inovação do carrossel de Catarina era a participação das mulheres. De fato, identificando-se com as mulheres espartanas, a própria Catarina era a capitã do time eslavo e conduzira seu treinamento, daí sua identificação com a amazonas Thalestris por Voltaire. Os líderes das quadrilhas Romana e Indiana eras os irmão Orlov, que ganharam todas as provas. A campeã do time de Catarina foi Natalia Golitsyna (née Chernyshova). Foi ela que serviu de modelo para o romance de Pushkin A Rainha de Espadas.  O carrossel serviu de inspiração e sátira para muitos poetas russos, como Vasily Petrov e Gravila Derzhavin. (NARODITSKAYA, I. (2012) Bewitching Russian Opera: The Tsarina from State to Stage. OUP: Oxford, p. 26-28).

(b) Olímpia, local dos jogos olímpicos, ficada na região da Grécia conhecida como Élida.

(c) Catarina II, a Grande, Imperatriz da Rússia, mais adiante identificada com a amazona Thalestris.

(d) Ou seja, para o Oeste, em direção à França.

(e) Píndaro era conhecido por suas inúmeras digressões, intercaladas por provérbios, entre a ocasião da ode, o mito e o louvor ao laudandus.


VERSÕES:

1ª: 26 de novembro de 2018.

2ª: 28 de novembro de 2018:
v
. 5: tu que tinhas o talento [tu, que o dom tinhas à mente];
v. 7: tu, que modulavas sabiamente [tu, que moldavas a contento];
v. 9: e sempre admiradas devem ser [e sempre devem ser admiradas];
v. 15: Foi com socos ser golpeados | frente aos [Foi com socos descompensados | lutar pros ];
v. 27-8: o olhar | da Ursa para àquele luminar [a vela | da Ursa para as sete estelas ];
v. 24: ver [achar];
v. 54: Julga os talentos por serviço [dá aos talentos por seu viço];
v. 57: [A alma, a graça, a beleza]

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Gedichte von der Niemandsrose | Poemas de “Rosa-ninguém”

Paul Celan | Robert de Brose

1 ES WAR ERDE IN IHNEN, und
sie gruben.
Sie gruben und gruben, so ging
ihr Tag dahin, ihre Nacht. Und sie lobten nicht Gott,
5
der, so hörten sie, alles dies wollte,
der, so hörten sie, alles dies wusste.
Sie gruben und hörten nichts mehr;
sie wurden nicht weise, erfanden kein Lied,
erdachten sich keinerlei Sprache.
10
Sie gruben.
Es kam eine Stille, es kam auch ein Sturm,
es kamen die Meere alle.
Ich grabe, du gräbst, und es gräbt auch der Wurm,
und das Singende dort sagt: Sie graben.
15
O einer, o keiner, o niemand, o du:
Wohin gings, da's nirgendhin ging?
O du gräbst und ich grab, und ich grab mich dir zu,
und am Finger erwacht uns der Ring.

1 WAS GESCHAH? Der Stein trat aus dem Berge.
Wer erwachte? Du und ich.
Sprache, Sprache. Mit-Stern. Neben-Erde.
Ärmer. Offen. Heimatlich.
5
Wohin gings? Gen Unverklungen.
Mit dem Stein gings, mit uns zwein.
Herz und Herz. Zu schwer befunden.
Schwerer werden. Leichter sein.

SALM

1 Niemand knetet uns wieder aus Erde und Lehm,
niemand bespricht unseren Staub.
Niemand.

Gelobt seist du, Niemand.
5
Dir zulieb wollen
wir blühn.
Dir
entgegen.

Ein Nichts
10
waren wir, sind wir, werden
wir bleiben, blühend:
die Nichts-, die
Niemandsrose.

Mit
15
dem Griffel seelenhell,
dem Staubfaden himmelswüst,
der Krone rot
vom Purpurwort, das wir sangen
über, o über

20 dem Dorn.

HAWDALAH

1 An dem einen, dem
einzigen
Faden, an ihm
spinnest du – von ihm

5
Umsponnener, ins
Freie, dahin,
ins Gebundne.

Groß
stehen die Spindeln

10
ins Unland, die Bäumer:es ist,
von unten her, ein
Licht geknüpft in die Luft-
matte, auf der du den Tisch deckst, den leeren
Stühlen und ihrem

15 Sabbatglanz zu --

zu Ehren.

HAVIA TERRA NELES, e eles
cavavam.
Cavavam e cavavam, seus dias
passavam assim, suas noites. E não louvavam Deus,
que, assim se ouvia, tudo isso queria,
que, assim se ouvia, tudo isso sabia.
Cavavam e já não mais ouviam;
Não se tornaram sábios, canção nenhuma encontraram,
nenhum tipo de língua inventaram.
Eles cavavam.
Veio um calmaria, e veio também a borrasca,
os mares todos vieram.
Eu cavo, tu cavas, e cava o verme também,
e o que acima cantava dizia: Eles cavam.
Ó algum, ó nenhum, ó ninguém, ó tu:
Ao que isto leva, se a nenhures leva?
Ó tu cavaste e eu cavei e eu me cavei pra junto a ti,
e no dedo despertou-nos o anel.

QUE SE PASSOU? A pedra emergiu da montanha.
Quem despertou? Tu e eu.
Língua, língua. Íntima estrela. Terra-fantasma.
Mais pobre. Exposta. Domesticada.
Aonde foi? Pro desamortecimento.
Foi-se com a pedra, com nós dois.
Coração e coração. Julgado assaz pesado.
Pesado tornando-se. Mais leve sendo.

SALMO

Ninguém nos molda de novo da terra e o barro,
ninguém evoca nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas tu, Ninguém.
Graças a ti queremos
florescer
Em tua
direção.

Um nada
éramos, somos, continuaremos
sendo, florescendo:
A rosa-nada, a
rosa-ninguém.

Com
o pistilo almibrilhante,
e o estame agriceleste,
a corona carmim
da púrpura palavra, que cantamos
sobre, ó sobre
o espinho

HAVDALAH

Junto do um, do
único
fio, junto dele
teces – por ele
entrelaçado, rumo a
liberdade, para longe,
rumo ao encadeado.

Imponentes
erguem-se os Fusos
na Desterra, as árvores: há,
de baixo acima, uma
luz entretecida à brisa
da pradaria, sobre a qual tu pões a mesa, a vazia
cadeira e seu
brilho do Sabbath em --

em sua honra.

Vädersoltavlan_cropped

Jacob Heinrich Elbfas (c.1600–1664), Vädersolstavlan. (Nebensonne ou Paraélio) em Stockholm em 1535.

FONTE: Paul Celan, Die Gedichte: Kommentierte Ausgabe. Berlin: Suhrkamp, 2005, p. 125;153.

NOTAS DO TRADUTOR:

II, v. 3: Mit-Stern. Neben-Erde | Íntima-estrela. Terra-fantasma: O prefixo “mit-“ aqui indica uma associação íntima, como em “Mitbruder” (“camarada”) e não, como se sói ver na maioria das traduções, a simples composição com a preposição "mit”/”com”. Da mesma forma com o advérbio “neben” (“póximo”, “vizinho”) que tem seu valor semântico deduzido construído, a meu ver, sobre a expressão “Nebenson”, quando, em virtude da difração da luz do sol na atmosfera, há a formação de duas imagens fantasmas do sol diametralmente opostas. Para Celan, a luz da poesia brilha, mas ela é difratada e deformada pela linguagem humana, que a torna mais distendida, pobre e particularizada.

II, v. 5: Gen Unverklungen | Pro desamortecimento: Unverklungen trata-se de um neologismo criado por Celan a partir do particípio passado do verbo verklingen, “amortecer”, quando se fala de um som (klingen sendo “soar”), e em conjunção com a partícula negativa un-, “des-”.

IV Havdalah (“Divisão”): cerimônia judaica de encerramento do Sabbath. Um dos principais símbolos do Havdála é o círio tríplice aceso durante a cerimônia e de onde, a meu ver, toda a imagética do poema deriva. É notória, também, a semelhança com o “Fuso da Necessidade”, como descrito no mito de Er na República de Platão (616b-e), algo já notado por Barbara Wiedemann, editora da obra utilizada nesta tradução.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Au Lecteur | Ao Leitor

Charles Baudelaire | Robert de Brose

Au Lecteur

1 La sottise, l'erreur, le péché, la lésine,
Occupent nos esprits et travaillent nos corps,
Et nous alimentons nos aimables remords,
Comme les mendiants nourrissent leur vermine.

5 Nos péchés sont têtus, nos repentirs sont lâches;
Nous nous faisons payer grassement nos aveux,
Et nous rentrons gaiement dans le chemin bourbeux,
Croyant par de vils pleurs laver toutes nos taches.

Sur l'oreiller du mal c'est Satan Trismégiste
10 Qui berce longuement notre esprit enchanté,
Et le riche métal de notre volonté
Est tout vaporisé par ce savant chimiste.

C'est le Diable qui tient les fils qui nous remuent!
Aux objets répugnants nous trouvons des appas;
15 Chaque jour vers l'Enfer nous descendons d'un pas,
Sans horreur, à travers des ténèbres qui puent.

Ainsi qu'un débauché pauvre qui baise et mange
Le sein martyrisé d'une antique catin,
Nous volons au passage un plaisir clandestin
20 Que nous pressons bien fort comme une vieille orange.

Serré, fourmillant, comme un million d'helminthes,
Dans nos cerveaux ribote un peuple de Démons,
Et, quand nous respirons, la Mort dans nos poumons
Descend, fleuve invisible, avec de sourdes plaintes.

25 Si le viol, le poison, le poignard, l'incendie,
N'ont pas encor brodé de leurs plaisants dessins
Le canevas banal de nos piteux destins,
C'est que notre âme, hélas! n'est pas assez hardie.

Mais parmi les chacals, les panthères, les lices,
30 Les singes, les scorpions, les vautours, les serpents,
Les monstres glapissants, hurlants, grognants, rampants,
Dans la ménagerie infâme de nos vices,

II en est un plus laid, plus méchant, plus immonde!
Quoiqu'il ne pousse ni grands gestes ni grands cris,
35 Il ferait volontiers de la terre un débris
Et dans un bâillement avalerait le monde;

C'est l'Ennui! L'oeil chargé d'un pleur involontaire,
II rêve d'échafauds en fumant son houka.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
40 — Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!

Ao Leitor

A avareza, o erro, o pecado, a leseira
infestam noss’alma e castigam os corpos,
e alimentamos nossos diletos remorsos,
como os mendigos nutrem suas bicheiras.

Tenazes, os pecados; o arrependimento, infirme,
gorda recompensa nos damos por contrição,
e felizes adentramos o enlameado chão,
crendo um vil pranto lavar nossos crimes.

No recosto do mal, eis Satã Trismesgisto
Que embala longamente noss’ alma encantada
E o rico metal de nossa vontade a um nada
reduz o sábio alquimista com seu flogisto.

É o Diabo que puxa os cordões que nos regem!
Nas coisas repugnantes encontramos repastos
E assim cada dia ao Inferno descemos um passo,
Sem horror, e através das trevas que fedem.

Como um pobre canalha que beija e morde
O seio martirizado de uma anciã vagabunda,
Furtamos de quebra uma satisfação imunda
que, como seca laranja, esprememos tão forte.

Denso, fervilhante, como um milhão de helmintos
nossa cabeça revolve num enxame de Demônios
e, ao respirarmos, a Morte, como um mecônio,
rio invisível, inunda o peito dum choro indistinto.

Se o estupro, o veneno, o punhal, e as chamas,
não bordaram ainda com desenhos tão finos
toda a tela medíocre de nossos destinos,
é porque, oh!, nossa alma não é tão sacana.

Mas dentre os chacais, as hienas e as panteras,
Os macacos, escorpiões, abutres, serpentes,
e os monstros ululantes, rastejantes, frementes,
na mistura infame de nossos vícios e mazelas,

Há um que é o mais feio, enganoso, mais imundo!
Mesmo não fazendo grandes gestos ou gritos,
De bom grado, deixará a terra toda em detritos
E num grande bocejo engolirá o mundo;

É o Enfado! O olho inchado de pura lassidão
Ele sonha com patíbulos fumando seu baseado
Tu o conheces, leitor, esse monstro delicado,
— Leitor fingidor, — meu igual, — meu irmão!

Félicien Rops, Le Songe  (1878-80)


Fonte: Les Fleurs du Mal. Classiques Français. Bookking Internacional: Paris, 1993.


Notas:

1. Primeira versão da tradução: 21 de novembro de 2018.

2. v. 2: influem nos nossos [e castigam os] |  nossa alma [noss’alma]

3. C'est l'Ennui! | É o Enfado!: “Enfado”, além de manter o mesmo padrão acentual do francês, reproduz mimeticamente o suspiro de uma pessoa enfadada com o contorno rítmico f:Ff (cf. “Que saco!” – também f:Ff, ou seja,  inspira/pausa/expira com força); os dois pontos em f:Ff representam um breve alongamento da sílaba terminada em líquida-nasal. A tradução por “Tédio” destruiria, nesse caso, a figura sonora.

4. L'oeil chargé d'un pleur involontaire | O olho inchado de pura lassidão: claramente o olho lacrimeja em virtude da fumaça do houka, que devemos imaginar envolvendo o Enfado. Não consegui chegar (ainda) a uma solução que preserve a imagem, mas fiquei satisfeito com a imagem de que o Enfado, fumando ópio, deve ter os olhos lassos e distantes.

5. son houka | seu baseado: O houka é o que chamaríamos de “narguile”/ “arguile” ou “narguilé”. Desnecessário dizer da dificuldade da rima. Ela não é importante, no entanto, e, além disso, a modernização e o aculturamento dado por “baseado” me pareceu atrativa.

6. Hypocrite lecteur | Leitor fingidor: Um aceno a Fernando Pessoa: não apenas o poeta é um fingidor; o leitor, também por viver vicariamente a real fantasia do poeta, é tão fingidor quanto aquele.