quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Au Lecteur | Ao Leitor

Charles Baudelaire | Robert de Brose

Au Lecteur

1 La sottise, l'erreur, le péché, la lésine,
Occupent nos esprits et travaillent nos corps,
Et nous alimentons nos aimables remords,
Comme les mendiants nourrissent leur vermine.

5 Nos péchés sont têtus, nos repentirs sont lâches;
Nous nous faisons payer grassement nos aveux,
Et nous rentrons gaiement dans le chemin bourbeux,
Croyant par de vils pleurs laver toutes nos taches.

Sur l'oreiller du mal c'est Satan Trismégiste
10 Qui berce longuement notre esprit enchanté,
Et le riche métal de notre volonté
Est tout vaporisé par ce savant chimiste.

C'est le Diable qui tient les fils qui nous remuent!
Aux objets répugnants nous trouvons des appas;
15 Chaque jour vers l'Enfer nous descendons d'un pas,
Sans horreur, à travers des ténèbres qui puent.

Ainsi qu'un débauché pauvre qui baise et mange
Le sein martyrisé d'une antique catin,
Nous volons au passage un plaisir clandestin
20 Que nous pressons bien fort comme une vieille orange.

Serré, fourmillant, comme un million d'helminthes,
Dans nos cerveaux ribote un peuple de Démons,
Et, quand nous respirons, la Mort dans nos poumons
Descend, fleuve invisible, avec de sourdes plaintes.

25 Si le viol, le poison, le poignard, l'incendie,
N'ont pas encor brodé de leurs plaisants dessins
Le canevas banal de nos piteux destins,
C'est que notre âme, hélas! n'est pas assez hardie.

Mais parmi les chacals, les panthères, les lices,
30 Les singes, les scorpions, les vautours, les serpents,
Les monstres glapissants, hurlants, grognants, rampants,
Dans la ménagerie infâme de nos vices,

II en est un plus laid, plus méchant, plus immonde!
Quoiqu'il ne pousse ni grands gestes ni grands cris,
35 Il ferait volontiers de la terre un débris
Et dans un bâillement avalerait le monde;

C'est l'Ennui! L'oeil chargé d'un pleur involontaire,
II rêve d'échafauds en fumant son houka.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
40 — Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!

Ao Leitor

A avareza, o erro, o pecado, a leseira
infestam noss’alma e castigam os corpos,
e alimentamos nossos diletos remorsos,
como os mendigos nutrem suas bicheiras.

Tenazes, os pecados; o arrependimento, infirme,
gorda recompensa nos damos por contrição,
e felizes adentramos o enlameado chão,
crendo um vil pranto lavar nossos crimes.

No recosto do mal, eis Satã Trismesgisto
Que embala longamente noss’ alma encantada
E o rico metal de nossa vontade a um nada
reduz o sábio alquimista com seu flogisto.

É o Diabo que puxa os cordões que nos regem!
Nas coisas repugnantes encontramos repastos
E assim cada dia ao Inferno descemos um passo,
Sem horror, e através das trevas que fedem.

Como um pobre canalha que beija e morde
O seio martirizado de uma anciã vagabunda,
Furtamos de quebra uma satisfação imunda
que, como seca laranja, esprememos tão forte.

Denso, fervilhante, como um milhão de helmintos
nossa cabeça revolve num enxame de Demônios
e, ao respirarmos, a Morte, como um mecônio,
rio invisível, inunda o peito dum choro indistinto.

Se o estupro, o veneno, o punhal, e as chamas,
não bordaram ainda com desenhos tão finos
toda a tela medíocre de nossos destinos,
é porque, oh!, nossa alma não é tão sacana.

Mas dentre os chacais, as hienas e as panteras,
Os macacos, escorpiões, abutres, serpentes,
e os monstros ululantes, rastejantes, frementes,
na mistura infame de nossos vícios e mazelas,

Há um que é o mais feio, enganoso, mais imundo!
Mesmo não fazendo grandes gestos ou gritos,
De bom grado, deixará a terra toda em detritos
E num grande bocejo engolirá o mundo;

É o Enfado! O olho inchado de pura lassidão
Ele sonha com patíbulos fumando seu baseado
Tu o conheces, leitor, esse monstro delicado,
— Leitor fingidor, — meu igual, — meu irmão!

Félicien Rops, Le Songe  (1878-80)


Fonte: Les Fleurs du Mal. Classiques Français. Bookking Internacional: Paris, 1993.


Notas:

1. Primeira versão da tradução: 21 de novembro de 2018.

2. v. 2: influem nos nossos [e castigam os] |  nossa alma [noss’alma]

3. C'est l'Ennui! | É o Enfado!: “Enfado”, além de manter o mesmo padrão acentual do francês, reproduz mimeticamente o suspiro de uma pessoa enfadada com o contorno rítmico f:Ff (cf. “Que saco!” – também f:Ff, ou seja,  inspira/pausa/expira com força); os dois pontos em f:Ff representam um breve alongamento da sílaba terminada em líquida-nasal. A tradução por “Tédio” destruiria, nesse caso, a figura sonora.

4. L'oeil chargé d'un pleur involontaire | O olho inchado de pura lassidão: claramente o olho lacrimeja em virtude da fumaça do houka, que devemos imaginar envolvendo o Enfado. Não consegui chegar (ainda) a uma solução que preserve a imagem, mas fiquei satisfeito com a imagem de que o Enfado, fumando ópio, deve ter os olhos lassos e distantes.

5. son houka | seu baseado: O houka é o que chamaríamos de “narguile”/ “arguile” ou “narguilé”. Desnecessário dizer da dificuldade da rima. Ela não é importante, no entanto, e, além disso, a modernização e o aculturamento dado por “baseado” me pareceu atrativa.

6. Hypocrite lecteur | Leitor fingidor: Um aceno a Fernando Pessoa: não apenas o poeta é um fingidor; o leitor, também por viver vicariamente a real fantasia do poeta, é tão fingidor quanto aquele.

domingo, 28 de outubro de 2018

Tecendo a Manhã | Weaving the Dawn

João Cabral de Melo Neto | Robert de Brose

1

1 Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
5 que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
10 se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretencendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
15 A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.



1

1 A rooster alone does not weave the dawn:
he will be forever in need of other roosters.
Of another that will catch the crow that he
and fling it to another; of another rooster
5 that catches the crow of a rooster before him
and flings it to another; and of other roosters
that amidst many other roosters criscross
the threads of the sun made of rooster crows,
so that the dawn, from a gauzy gossamer
10 begins to weave itself through all the roosters.

2

Taking shape into a canvass, amidst all,
rising as a tent, which admits of all,
interlacing itself for all, in the shawl
(the dawn) that floats like an empty cocoon.
15 The dawn, a dossel of a fabric so sheer,
that, woven, rises by itself: light balloon.



rooster2 
FONTE: A Educação pela Pedra e depois. Nova Fronteira: São Paulo, 1997.

sábado, 27 de outubro de 2018

A Flor e a Náusea | The Flower and the Nausea

Carlos Drummond de Andrade | Robert de Brose

1 Preso à minha classe e a algumas roupas,
    vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

5 Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
10 fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

15 Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
20 Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
25 Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
30 Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
35 Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

40 Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
45 e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

1 Stuck to my class and some clothes,
    dressed in white I go through the gray street.
Melancholies, commodities spy on me.
Shall I go on until I get sick?
Can I, without weapons, revolt?

5 Dirty eyes on the spire clock:
No, time’s not yet come of full justice.
Time is still of feces, bad poems, hallucinations and waiting.
The poor time, the poor poet
10 fuse into the same impasse.

In vain I try to explain myself, the walls are deaf.
Under the skin, there are ciphers, codes.
The sun gives solace to the sick and renew them not.
Things. How sad are things considered without emphasis.

15 To throw up this boredom over the city.
Fourty years and no problem
solved, not even put.
No letter written or received.
All men come back home.
20 They are less free, but carry newspapers
and spell the world, knowing they lose it.

Crimes of the land, how to forgive them?
I took part in a lot, others I hid.
Some I found beautiful, were published.
25 Soft crimes that help to live.
Daily ration of errors, shared at home.
The ferocious bakers of evil.
The ferocious milkmen of evil.

To set everything on fire, including me.
30 The 1918 boy they called an anarchist.
But my hate is the best part of me.
Through it I save myself
and give a few a shred of hope.

A flower was born on the street!
35 Tramcars, stay clear, buses, steel river of traffic.
A flower still wan
tricks the police, has broken through the asphalt.
Let all be still, let transactions cease,
I guarantee a flower was born.

40 Its color, imperceptible.
Its petals, they do no open.
Its name, it is not in the books.
It is ugly. But it is indeed a flower.

I sit on the ground in my country’s capital, five o’clock in the afternoon,
45 and slowly move my hand over this insecure form.
Over the mountains, thick clouds gather.
Little white dots move on the sea, startled chickens.
It’s ugly. But it’s a flower. It bore through the asphalt, the boredom,
    [the disgust, and the hatred.


FONTE: Antologia Poética – 12a edição – Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, p. 14-16.