In the desert I saw a creature, naked, bestial, Who, squatting upon the ground, Held his heart in his hands, 5And ate of it. I said, "Is it good, friend?" "It is bitter—bitter," he answered;
"But I like it "Because it is bitter, 10"And because it is my heart."
III
No deserto Vi uma criatura, nua, bestial, Que, agachada sobre o chão, Tinha o coração em suas mãos, 5 E dele comia. Eu disse, "Está bom, amigo?" "É amargo – amargo, me disse;
"Mas eu gosto "Porque é amargo, 10 "E porque é meu coração".
IX
I stood upon a high place, And saw, below, many devils Running, leaping, And carousing in sin. 5One looked up, grinning, And said, "Conrade! Brother!"
IX
Fiquei num lugar bem alto E vi, lá embaixo, muitos diabos Correndo, saltitando, Farreando em pecado. 5 Um olhou para cima, rindo E disse: "Parceiro! Irmão!"
XXIV
XXIV
I saw a man pursuing the horizon; Round and round they sped. I was disturbed at this; I accosted the man. 5 "It is futile," I said, "You can never" – You lie," he cried, And ran on.
Vi um homem perseguindo o horizonte Cada vez mais rápido corriam. E isto me perturbou; Aproximei-me do homem. 5 "É inútil," eu disse, "Você nunca vai" – "É mentira," ele gritou, E saiu correndo.
XXIX
XXIX
Behold from the land of the farther suns I returned. And I was in a reptile swarming place, Peopled, otherwise, with grimaces, 5Shrouded above in black impenetrableness. I shrank, loathing, Sick with it. And I said to him, "What is this?" 10He made answer slowly, Spirit, this is a world; "This was your home."
Vê, eis que da terra de longínquos sóis Eu retornei. E estava em um local que pululava de répteis, Povoado, doutra forma, com esgares, 5 Tudo acima envolto por negra impenetrabilidade. Retraí-me, com asco Enojado daquilo. E lhe disse, "Mas o que é isso?" 10 E ele me respondeu com cuidado, "Espírito, isto é um mundo; "Esta foi tua casa."
XXXVI
XXXVI
I met a seer. He held in his hands The book of wisdom. "Sir," I addressed him, 5"Let me read." "Child –" he began. "Sir," I said, "Think not that I am a child, "For already I know too much 10"Of that which you hold. "Aye, much."
He smiled. Then he opened the book And held it before me. – 15Strange that I have grown so suddenly blind.
Conheci um vidente. Em suas mãos ele tinha O livro da sabedoria. "Senhor," eu lhe disse, 5 "Deixa me ler." "Meu filho–" começou. "Senhor," interrompi, "Não penses eu seja uma criança, "Pois eu já sei coisas demais 10 "dessas de que você falou. "Sim, coisas demais."
Ele sorriu. E então abriu o livro E o ergueu na minha frente. 15 Estranho que eu ficasse tão subitamente cego.
XLII
XLII
I walked in a desert. And I cried, "Ah, God, take me from this place!" A voice said, "It is no desert." 5I cried, "Well, but– "The sand, the heat, the vacant horizon." A voice said, "It is no desert."
Caminhei em um deserto. E então gritei, "Ah, Deus, tira-me deste lugar" Uma voz disse, "Não é nenhum deserto." 5 Eu gritei, "Sim, mas–" "E as dunas, o calor, o horizonte vazio." Uma voz disse, "Não é nenhum deserto."
XLVI
XLVI
Many red devils ran from my heart And out upon the page, They were so tiny The pen could mash them. 5And many struggled in the ink. It was strange To write in this red muck Of things from my heart.
Muitos diabos vermelhos fugiram do meu coração E caíram na página, Eram tão pequeninos A caneta podia esmagá-los. 5 E muitos debatiam-se na tinta. Era esquisito Escrever nessa gosma vermelha De coisas do meu coração.
LVI
LVI
A man feared that he might find an assassin; Another that he might find a victim. One was more wise than the other.
Um homem temia encontrar um assassino. Um outro, que pudesse encontrar uma vítima. Um foi mais sábio do que o outro.
Je suis le Ténébreux, - le Veuf, - l'Inconsolé, Le Prince d'Aquitaine à la Tour abolie : Ma seule Etoile est morte, - et mon luth constellé Porte le Soleil noir de la Mélancolie. 5Dans la nuit du Tombeau, Toi qui m'as consolé, Rends-moi le Pausilippe et la mer d'Italie, La fleur qui plaisait tant à mon coeur désolé, Et la treille où le Pampre à la Rose s'allie. Suis-je Amour ou Phébus ?... Lusignan ou Biron ? 10Mon front est rouge encor du baiser de la Reine; J'ai rêvé dans la Grotte où nage la sirène... Et j'ai deux fois vainqueur traversé l'Achéron : Modulant tour à tour sur la lyre d'Orphée Les soupirs de la Sainte et les cris de la Fée.
Eu sou o Tenebroso, - o Viúvo, - o Inconsolado O Príncipe da Aquitânia na Torre vazia: Minha estrela está morta, - e meu lude quebrado Carrega o Sol negro da Melancolia. 5 Na Noite da Tumba, tu que me hás consolado, Dá-me o monte Posílipo e o mar da Itália, A flor que agradou meu coração desolado, E a treliça onde a rama à rosa se amalha. Sou o Amor ou Febo?... Lusinã ou Birão? 10 A fronte ainda rutila do beijo da rainha; Eu da sereia sonhei na grota marinha... E duas vezes vencedor cruzei o Aquerão: Modulando a lira de Orfeu de forma alternada Entre os suspiros da santa e os gritos da fada.
In der Mandel – was steht in der Mandel? Das Nichts. Es steht das Nichts in der Mandel. Da steht es und steht. 5 Im Nichts – wer steht da? Der Koenig. Da steht der Koenig, der Koenig. Da steht er und steht. Judenlocke, wirst nicht grau. Und dein Aug – wohin steht dein Auge? 10 Dein Aug steht der Mandel entgegen. Dein Aug, dem Nichts stehts entgegen. Es steht zum Koenig. So steht es und steht. Menschenlocke, wirst nicht grau. 15 Leere Mandel, koenigsblau.
Na amêndoa – o que fica na amêndoa? O Nada. Na amêndoa fica o Nada. La ele fica, ele fica. 5 No nada – quem fica lá? O Rei. Lá fica o Rei, o Rei. Lá ele fica, ele fica. Cacho judeu, gris não te verei. E teu olho – onde fica teu olho? 10 Teu olho fica à amêndoa oposto. Teu olho fica ao Nada contraposto. Ele fica face ao Rei. Lá ele fica, ele fica. Cacho humano, gris não te verei. 15 Oca amêndoa, azul-do-rei.
Notas:
1. Mandorla: Palavra italiana que significa "amêndoa", mas também, e sobretudo, a auréola (vesica piscis) que circunda o ícone de Cristo. A mandorla separa o mundo sublunar do divino como se fosse um parêntese aberto na realidade. 2. Das Nichts: Em algumas representações apofáticas de Cristo e do divino, sobretudo ortodoxas, a mandorla apresenta-se ou completamente negra, ou com um núcleo negro circundado por anéis cada vez mais escuros de fora para dentro. O que jaz no centro é um mistério indescritível, visto pelos olhos mortais como um Nada, de forma análoga ao horizonte de eventos de um buraco negro. 3. Da steht es und steht: Há um jogo, em todo o poema, sobre os diversos matizes de signigicado do verbo stehen. Por exemplo, o primeiro verso poderia ser lido como: "Na amêndoa – o que está inscrito na amêndoa?". No entanto, no v. 4, usado intransitivamente, stehen denota a permanência das coisas que existem fora do tempo, i.e., que são transcendentes, que "estão" e "ficam" no mesmo estado, imutáveis ad aeternum. Já nos vv. 9-12, stehen serve para indicar (o)posição (wohin/ entgegenstehen) ou (com)posição (stehen zu). 4. koenigsblau: azul-real, um tom escuro de azul, associado com o centro negro da mandorla, o Ayn-Sof, ou o inefável. Foi preciso adaptar os vv. 8 e 14 para manter a rima final. Cf. uma passagem semelhante em T. S. Eliot, Ash Wednesday, "In blue of larkspur, blue of Mary's colour,| Sovegna vos". Edições: 4 Outubro 2018: vv. 1, 9, 10 "está" [fica] | v. 3 "Na amêndoa fica o Nada"[O Nada está na amêndoa] | vv. 4, 7, 13 "lá ele fica, ele fica" [lá ele está, e está] | v. 5 "quem fica lá" [quem lá está] | v. 6 "Lá fica o Rei, o Rei" [Lá está o Rei, o Rei] | v. 9 "onde" [aonde] | v. 11 "Teu olho fica ao Nada contraposto" [Teu olho ao Nada está contraposto] | v. 12 "Ele fica face ao Rei" [ele está para o Rei]
Was hab ich getan?
Die Nacht besamt, als könnt es
noch andere geben, nächtiger als
diese.
5 Vogelflug, Steinflug, tausend
beschriebene Bahnen. Blicke,
geraubt und gepflückt. Das Meer,
gekostet, vertrunken, verträumt. Eine Stunde,
seelenverfinstert. Die nächste, ein Herbstlicht, 10 dargebracht einem blinden
Gefühl, das des Wegs kam. Andere, viele,
ortlos und schwer aus sich selbst: erblickt und umgangen.
Findlinge, Sterne, schwarz und voll Sprache: benannt
nach zerschwiegenem Schwur.
15 Und einmal (wann? auch dies ist vergessen);
den Widerhaken gefühlt,
wo der Puls den Gegentakt wagte.
O que foi que eu fiz?
Inseminei a noite como se pudera
outras inda haver, mais noturnas que
essa.
5 Voo de ave, voo de pedra, mil
estradas traçadas. Olhares
tolhidos e colhidos. O mar
provado, absorvido, abstraído. Uma hora,
animadumbrada. A próxima, uma luz outonal, 10 ofertada a um sentimento
cego, que do caminho veio. Outros, muitos,
ilocáveis, pesados por si mesmos: mirados e contornados.
Achados, estrelas, negros e todo linguagem: nomeados
a partir de um voto fragmentado em silêncio.
15 E uma vez (quando? também isto foi esquecido);
o gancho sentido
onde o pulso tentou o contra-ataque.
Notas
1. Die Nacht besamt: Irene Fußl (Geschenke an Aufmerksame,
2008, p. 62) vê neste poema uma alusão ao processo de criação levado a cabo por
Lilith, que roubaria o sêmen dos homens para produzir a sua prole demoníaca e,
de certa forma, incompleta, defeituosa, porque desprovida do divino. A indagação
do v. 1, "O que foi que eu fiz?" leva a crer que o
eu-lírico de certa forma arrepende-se de sua criação ou de sua ousadia como
demiurgo imperfeito de um microcosmos pessoal.
2. Vogelflug (...) gepflückt: Tentei manter o
andamento trocaico do original (Ff Ff Ff) e transformei, até onde pude, a
aliteração em /b/ do v. 6 em /s/ e /t/. Parece-me que a clareza do
/a:/ em Bahnen aponta para a extensão do céu, contemplado pelo
olhar do eu-lírico, onde estão o caminho das aves e das pedras que lhes perseguem
(?), o que me levou a procurar duas palavras que contivessem um /a/ em posição
tônica e, portanto, mais longa, para reproduzir esse efeito. O eco de
"estradas traçadas" pareceu-me, portanto, apropriado.
3. gekostet, vertrunken, verträumt:
Pareceu-me importante preservar a repetição do ver- (um sufixo, em
alemão que indica completude, ou a mudança de estado, da ideia expressa por um
verbo ou um nome) em português. Note que "verträumen" não é apenas
"passar o tempo sonhando", mas "sonhar com algo que não existe"
ou que "existe apenas em sonhos", algo que é, portanto, uma
"abstração". Esse mar com que sonha o eu-lírico é um mar que só
existe em seus sonhos, ou seja, é a abstração de um mar.
4. seelenverfinstert: palavra inventada por Celan, que tentei reproduzir
em português por "animadumbrar", i.e., "encobrir com a sombra da
alma". "Seele", aqui, tem sentido ativo: "que a alma
obumbrou, encobriu, obscureceu".
5. Findlinge, Sterne, schwarz und voll Sprache: Findling é
tanto um bloco de rocha que foi deslocado pela ação das geleiras (das marés, de
lava etc.) quanto uma criança perdida, um órfão, encontrado a vagar, mas de
quem nada se sabe. Preferi manter a tradução mais literal, "achado",
porque pode se referir a ambos. Schwarz und voll Sprache pode
ser tanto predicativo de Sterne quanto de Findling e
"Sterne", prefeiro a última opção e, por isso, levei ao masculino
plural.
6. den Widerhaken gefühlt, | wo der Puls den Gegentakt
wagte: Der Widerhake é um gancho, como um anzol e não,
necessariamente, uma farpa (que seria Stachel, como em Stacheldraht).
É no sentido de "gancho" que Celan usa a mesma palavra
em Hast du eing Aug: "Hast du ein Aug| für den Widerhaken| in
meiner Herzwand". Gegentakt, por outro
lado, deve-se referir a um contra-ritmo, um contra-ataque, como se o eu-lírico
lutasse contra algo que tenta fazer com que ele se conforme a um determinado
movimento/ destino/ direção, como se ele fora uma marionete, ou melhor, um
peixe fisgado, que tenta se libertar do anzol, apenas para ser puxado de nova
conta a sua vontade em direção à morte.